Conheci a Cristo no final dos anos 90. Minha experiência de conversão se
deu em uma igreja batista recém-plantada na minha cidade. Meu batismo e
minha experiência de discípulo começou no inicio do ano 2000, na igreja
Assembleia de Deus. Eu vivi uma parte do movimento AD2000 (1) e da
chamada “Década da Colheita” (2), e de certa forma toda minha geração
foi influenciada por estes movimentos. Uma e outra vez, escutávamos a
frase: “O Brasil é um grande celeiro de missionário”. Por nossa pequena
igreja passavam alunos da “Missão Horizontes” falando sobre a janela
10/40 e sobre como o brasileiro gasta mais com Coca-cola do que com o
Reino de Deus. Após o culto, nós doávamos aquilo que tínhamos para as
missões. Lembro-me de um diácono pobre doando um relógio a um
missionário que havia perdido o seu em uma viagem de barco na Amazônia.
Lembro-me também de um amigo que constrangido pela necessidade da obra e
sem nada para doar, tirou dos pés um par de tênis Nike e colocou sobre o
altar, voltando para casa descalço depois do culto. A gente dava o que
tinha, e não era por causa de alguma promessa de retorno financeiro
(como nas campanhas dos televangelistas atuais), mas simplesmente por
amor e desejo de ver o evangelho avançando entre as nações da terra. Os
jovens da igreja (e eu era um deles) eram muito ativos: organizavam
jograis e teatros com temas missionários, e muitos de nós queríamos ser
pastores ou missionários. Hoje, vários daqueles jovens com os quais
cresci são pastores, evangelistas, missionários, obreiros em suas
igrejas locais, e estão envolvidos de alguma forma com a grande
comissão.
UMA IGREJA QUE RESPIRAVA MISSOES
Mas eu não consigo escrever este texto sem lágrimas nos olhos. Agora
mesmo, sinto o peito doer e meus olhos se enchem de água ao me lembrar
daqueles dias quando a gente vivia de maneira tão intensa, organizávamos
vigílias, acampamentos de oração, visitávamos, evangelizávamos de
verdade. Conheço um jovem em Cristo que aos 16 anos tinha uma rotina
invejável: Ele fazia semanalmente visitas no hospital da nossa pequena
cidade, e saia dali direto para o asilo contrabandeando doces e bíblias
para os anciãos com quem passava parte do seu domingo. Por volta das 4
horas da tarde saia dali com outros meninos da sua idade, numa kombi
velha da wolksvagen para realizar visitas em uma comunidade rural e
"cooperar" com os irmãos de lá. As vezes a Kombi não vinha, e eles
faziam o trajeto de 18 quilômetros de bicicleta. Quando chegavam a
cidade novamente, era para tomar um banho e ir ao culto, ansiosos por
ouvir a Palavra pregada e dispostos a participar, seja cantando,
pregando, limpando ou fazendo qualquer outra coisa na igreja local.
Durante a semana, ele e outros eram voluntários no “Desafio Jovem
Liberdade” – centro de recuperação para usuários de drogas – muitas
vezes saindo do trabalho direto para lá, para ensinar violão, passar
algum tempo de comunhão com os internos e pregar no culto da noite.
Esses rapazes respiravam missões.
Na época, surgiam seminários com cursos rápidos, em média 2 anos, em
regime de internato, onde a ênfase não era apenas preparar teólogos, mas
obreiros. Trabalhavam-se questões como caráter, perseverança, domínio
próprio, obediência, e grande parte das disciplinas do curso eram de
viés missionário. Éramos confrontados com as biografias de William
Carey, David Brainerd, Hudson Taylor, Adoniran Judson, George Miller, e
nos inspirávamos neles. Criticava-se o modelo de seminário que formava
apenas teólogos e falava-se muito em vocação ministerial. Escutávamos
uma e outra vez que ser pastor é um dom e não uma profissão, e que o
ministério é muito mais dar do que receber. O ponto alto das aulas era
quando por lá passava algum missionário em transito, e contava as
experiências vividas naquela terra desconhecida. Lembro-me de ter ouvido
um desses missionários falando sobre o país dos Incas, e de como me
senti desafiado pelo testemunho daquele jovem obreiro. À noite, enquanto
orava por aquele país, discerni claramente a voz de Deus falando
fortemente ao meu coração: “Eu te levarei ao Peru!”. Cai em pranto,
sentindo um misto de temor e imensa alegria, pelo peso da
responsabilidade e pela honra recebida. Sai do meu país em 2003, quando
ainda se vivia a ressaca destes movimentos.
JOVENS QUE NÃO ALMEJAM O MINISTERIO
Hoje a igreja evangélica definitivamente não é a mesma. Ela nem sequer
se parece com aquela igreja de 15 anos atrás. Cada vez que viajo ao
Brasil, fico absorto com a secularização cada vez maior da igreja. Vejo
uma igreja rica, muito rica, mas tremendamente ensimesmada. Em círculos
tradicionais e na ala pentecostal clássica, pouco se fala em evangelismo
e missões. Já os neopentecostais distorceram o conceito de evangelismo e
missões transformando a igreja em uma pirâmide e implementando visões
celulares das mais absurdas, substituindo paixão missionária por
obediência cega a um líder autoritário. Se antes os jovens desejavam o
ministério, a geração atual foge dele. É comum ver rapazes de moças de
vinte e poucos anos com altos salários, comprando carros importados,
fundando empresas, empreendendo e ganhando muito dinheiro. Os pastores
destas igrejas sofrem, pois tem que se desdobrar em mil ofícios para
atender as necessidades do rebanho, já que ninguém quer se envolver no
ministério e sacrificar as horas de descanso para cuidar das
necessidades alheias. Alguns poucos ainda ousam se envolver com missões,
mas raramente em tempo integral. Ao invés disso, doam parte das suas
férias para servir em algum país exótico, e passam 4 ou 5 dias visitando
alguma igreja local, e o resto das férias em alguma praia paradisíaca
do Índico ou do Pacífico. Não trabalham nada, mas tiram umas quinhentas
fotos com crianças locais e chegam a suas igrejas com testemunhos
fantasmagóricos acerca de como salvaram o mundo em seis dias e ensinaram
os pastores e missionários locais a pastorearem suas igrejas.
MISSIÓLOGOS DE INTERNET QUE NUNCA SE ENVOLVERAM COM MISSOES
O conceito de missão tem sido banalizado por uma geração hedonista mais
preocupada com seus prazeres do que com glorificar o Cristo entre as
nações. Para justificar sua falta de coragem para encarar o campo
missionário, criam-se as mais distintas agencias missionárias, muitas
das quais não enviam e nem sustentam nenhum missionário, dedicando-se
apenas a recrutar voluntários para viagens de ferias, exatamente do tipo
que mencionei no último parágrafo. Diga-se de passagem, o dinheiro
gasto por uma equipe de voluntários de férias, se fosse doado
integralmente a alguma missão séria que trabalhe entre os autóctones,
daria para sustentar cerca de 10 obreiros durante um ano. Crer que 20
brasileiros em uma semana podem fazer um melhor trabalho que um obreiro
nacional em um ano é um sofisma, mas parece ser este o pensamento
predominante nessas missões recém-criadas no Brasil (as exceções
conformam a regra).
Embora não estejamos mais tão engajados com missões transculturais,
nunca tivemos tantos “ESPECIALISTAS” em missões! Meninos de vinte anos,
com pouca ou nenhuma formação teológica, sem experiência de vida ou
ministério e cujo maior esforço missionário foi falar de Jesus para o
colega de classe, editam blogs e vlogs, dão opiniões e organizam
conferencias missionárias onde eles mesmos são os preletores.
Recentemente um desses palpiteiros da internet, um garoto de 20 anos,
escreveu um livro sobre missões. Muita gente elogiou a atitude do rapaz e
não encontrei ninguém, nem mesmo entre a velha guarda evangélica (que
também é ativa nas redes sociais) para colocar freio na arrogância do
moleque que escreveu suas 120 paginas sobre um assunto que ele nunca
experimentou de fato. Há algum tempo recebi duas equipes de voluntários
na cidade de Piura, onde desde 2008 temos desenvolvido alguns projetos
missionários. Um dos rapazes que nos visitou, ainda nem tinha barba no
rosto, mas logo se apresentou como consultor em missões. Segundo ele,
varias igrejas no Brasil contam com seus conhecimentos de consultoria.
Isso me parece estranho, se considerarmos que ele nunca foi missionário
de fato, apenas participou de algumas palestras com ênfase na famigerada
e pouco eficaz Missão Integral (3). Recebi deste garoto que nunca fez
missões, diversos conselhos sobre como treinar meus obreiros e torná-los
mais efetivos. Outros chegam já satanizando a cultura, tendo visões
esquisitas acerca de demônios territoriais e correntes que estão
aprisionando nossa igreja e missão, algo muito esquisito e sem bases
bíblicas em minha opinião.
UMA JUVENTUDE QUE QUER ENSINAR, MAS NÃO SE PRONTIFICA A APRENDER
Durante os dois últimos meses visitei varias igrejas no Brasil e por
onde passei, desafiei pessoas para virem ao campo missionário no Peru, e
o máximo que consegui foram uns garotos meio-hippies dispostos a vir
salvar o mundo em uma semana e ensinar os pastores a pastorear suas
igrejas. Todos os rapazes com quem falei queriam vir e ditar seminários,
palestras, conferências, treinamento para pastores, e não atentavam
para o ridículo das suas propostas, já que eles mesmos nunca pastorearam
nem suas próprias famílias. No entanto, nenhum deles se mostrou
disposto a passar ao menos um ano trabalhando de forma sistemática e
fiel junto aos nativos, participando da vida, da luta e das dores do
povo, compartilhando a comida e vivendo a verdadeira essência da missão.
Todos queriam ensinar, ninguém estava disposto a viver. Todos queriam
vir e impor; ninguém estava disposto a vir, viver e receber. Todos
queriam formar obreiros, ninguém queria ser formado como obreiro. Todos
queriam vir correndo e voltar; ninguém estava disposto a vir e
permanecer. Cada um tinha uma visão diferente para a igreja peruana,
mesmo sem ter conhecido de perto este campo missionário. Todos tinham
receitas exatas para fortalecer o ministério local, mas ninguém queria
servir no ministério. Muitos reis, nenhum servo. Como diria o pastor
Kolenda, de saudosa memória, simplesmente “muito cacique para pouco
índio”.
UMA IGREJA SECULARIZADA QUE NÃO AMA MISSOES
Não posso dizer exatamente onde foi que a igreja errou (não se
preocupem, deve ter algum conferencista de vinte anos capaz de decifrar
este mistério!). Porém, mesmo sem saber exatamente, acredito que alguns
fatores são visíveis e fáceis de discernir: economia estável, bons
empregos, oportunidade de fazer duas, três, quatro faculdades, anos de
pregação antropocêntrica que exclui o sacrifício como parte da
experiência cristã, tudo isso contribuiu para uma horrível secularização
da igreja. Se eu fosse dispensacionalista, não teria dificuldade em
aceitar que a igreja está vivendo a “Era de Laodicéia”. A igreja de
Laodiceia e a igreja brasileira são irmãs: As duas são ricas
materialmente, ensimesmadas, autossuficientes. As duas estão corroídas
pelo pecado, empobrecidas de galardão e cegas quanto a sua real
situação. Se há algumas décadas dizia-se que o Brasil era um celeiro de
missões, hoje tenho certeza que este título deve pertencer a algum
outro país: China, Índia, Coreia do Sul, talvez... Mas definitivamente,
esse título já não se pode aplicar ao Brasil.
***
Leonardo Gonçalves é missionario há 11 anos. Neste período ajudou a plantar e consolidar igrejas no Brasil, Argentina (Patagonia e provincia de missiones), e no norte de Peru. Desde 2008 vive na cidade de Piura, envolvendo-se na plantação de 7 igrejas autóctones. O Projeto Piura sustenta hoje 6 obreiros autoctones e ajuda a 60 crianças provindas de comunidades carentes do Peru.
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NOTAS:
1. O Movimento Ano 2000 (AD 2000) surgiu de uma reunião em janeiro de 1989, em Singapura, onde foi realiazada uma Consulta Global de Evangelização Mundial para o ano 2000 e Além. Esta consulta deu origem ao movimento denominado AD 2000, cujo enfoque eram os povos não alcançados da chamada ‘janela 10/40’.
2. A Década da Colheita foi o resultado de um encontro de líderes das Assembleias de realizado nos Estados Unidos, em 1988. Foram também estabelecidas metas bem claras para a AD no Brasil, para serem alcançadas até o ano 2000: (1) Levantar um exército de três milhões de intercessores; (2) Ganhar 50 milhões de almas para Cristo; (3) Preparar 100 mil obreiros dispostos a trabalhar na seara do Mestre. (4) Estabelecer 50 mil novas igrejas em todo o Brasil; e (5) Enviar novos missionários para outras nações.
3. Não é que eu me oponha totalmente a Missão Integral. Minha crítica a este movimento pode ser resumida em poucos pontos: (1) A terminologia Missão Integral é, por si, uma redundância. Se é missão cristã, deve ser integral, e se não for integral (no sentido de total), não é missão. (2) Os promotores da Missão Integral no Brasil parecem se inspirar mais no marxismo do que na Bíblia. Um dos líderes desse movimento chega a apresentar o comunismo como uma ideia bíblica de comunidade. Ora, confundir comunidade cristã com uma ideologia que foi responsável por milhões de mortes no mundo, incluindo muitos cristãos, é uma boçalidade. (3) O discurso da Missão Integral tem servido de plataforma política para ideias esquerdistas, e sua super-ênfase no social tem levado alguns a pregar um conceito que beira a salvação pelas obras, algo abominável do ponto de vista bíblico. (4) Nunca vi um leprosário criado ou mantido por adeptos da Missão Integral.
FONTE: http://www.pulpitocristao.com/
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